quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A literatura de cordel

Nestas últimas semanas um texto do educador e cordelista baiano Antônio Barreto tem gerado comentários. No cordel intitulado “Big Brother Brasil, um programa imbecil” ele"detona" programa, emissora e apresentador, tudo bem estruturado em 25 septilhas.

Big Brother Brasil, um programa imbecil
                                Antônio Barreto
Curtir o Pedro Bial
E sentir tanta alegria
É sinal de que você
O mau-gosto aprecia
Dá valor ao que é banal
É preguiçoso mental
E adora baixaria.

Há muito tempo não vejo
Um programa tão ‘fuleiro’
Produzido pela Globo
Visando Ibope e dinheiro
Que além de alienar
Vai por certo atrofiar
A mente do brasileiro.

Me refiro ao brasileiro
Que está em formação
E precisa evoluir
Através da Educação
Mas se torna um refém
Iletrado, ‘zé-ninguém’
Um escravo da ilusão.

Em frente à televisão
Lá está toda a família
Longe da realidade
Onde a bobagem fervilha
Não sabendo essa gente
Desprovida e inocente
Desta enorme ‘armadilha’.

Cuidado, Pedro Bial
Chega de esculhambação
Respeite o trabalhador
Dessa sofrida Nação
Deixe de chamar de heróis
Essas girls e esses boys
Que têm cara de bundão.

O seu pai e a sua mãe,
Querido Pedro Bial,
São verdadeiros heróis
E merecem nosso aval
Pois tiveram que lutar
Pra manter e te educar
Com esforço especial.

Muitos já se sentem mal
Com seu discurso vazio.
Pessoas inteligentes
Se enchem de calafrio
Porque quando você fala
A sua palavra é bala
A ferir o nosso brio.

Um país como Brasil
Carente de educação
Precisa de gente grande
Para dar boa lição
Mas você na rede Globo
Faz esse papel de bobo
Enganando a Nação.

Respeite, Pedro Bienal
Nosso povo brasileiro
Que acorda de madrugada
E trabalha o dia inteiro
Dar muito duro, anda rouco
Paga impostos, ganha pouco:
Povo HERÓI, povo guerreiro.

Enquanto a sociedade
Neste momento atual
Se preocupa com a crise
Econômica e social
Você precisa entender
Que queremos aprender
Algo sério – não banal.

Esse programa da Globo
Vem nos mostrar sem engano
Que tudo que ali ocorre
Parece um zoológico humano
Onde impera a esperteza
A malandragem, a baixeza:
Um cenário sub-humano.

A moral e a inteligência
Não são mais valorizadas.
Os “heróis” protagonizam
Um mundo de palhaçadas
Sem critério e sem ética
Em que vaidade e estética
São muito mais que louvadas.

Não se vê força poética
Nem projeto educativo.
Um mar de vulgaridade
Já tornou-se imperativo.
O que se vê realmente
É um programa deprimente
Sem nenhum objetivo.

Talvez haja objetivo
“professor”, Pedro Bial
O que vocês tão querendo
É injetar o banal
Deseducando o Brasil
Nesse Big Brother vil
De lavagem cerebral.

Isso é um desserviço
Mal exemplo à juventude
Que precisa de esperança
Educação e atitude
Porém a mediocridade
Unida à banalidade
Faz com que ninguém estude.

É grande o constrangimento
De pessoas confinadas
Num espaço luxuoso
Curtindo todas baladas:
Corpos “belos” na piscina
A gastar adrenalina:
Nesse mar de palhaçadas.

Se a intenção da Globo
É de nos “emburrecer”
Deixando o povo demente
Refém do seu poder:
Pois saiba que a exceção
(Amantes da educação)
Vai contestar a valer.

A você, Pedro Bial
Um mercador da ilusão
Junto à poderosa Globo
Que conduz nossa Nação
Eu lhe peço esse favor:
Reflita no seu labor
E escute seu coração.

E vocês caros irmãos
Que estão nessa cegueira
Não façam mais ligações
Apoiando essa besteira.
Não deem sua grana à Globo
Isso é papel de bobo:
Fujam dessa baboseira.

E quando chegar ao fim
Desse Big Brother vil
Que em nada contribui
Para o povo varonil
Ninguém vai sentir saudade:
Quem lucra é a sociedade
Do nosso querido Brasil.

E saiba, caro leitor
Que nós somos os culpados
Porque sai do nosso bolso
Esses milhões desejados
Que são ligações diárias
Bastante desnecessárias
Pra esses desocupados.

A loja do BBB
Vendendo só porcaria
Enganando muita gente
Que logo se contagia
Com tanta futilidade
Um mar de vulgaridade BBB Big Brother Brasil = Programa Imbecil..
Que nunca terá valia.

Chega de vulgaridade
E apelo sexual.
Não somos só futebol,
baixaria e carnaval.
Queremos Educação
E também evolução
No mundo espiritual.

Cadê a cidadania
Dos nossos educadores
Dos alunos, dos políticos
Poetas, trabalhadores?
Seremos sempre enganados
e vamos ficar calados
diante de enganadores?

Barreto termina assim
Alertando ao Bial:
Reveja logo esse equívoco
Reaja à força do mal…
Eleve o seu coração
Tomando uma decisão
Ou então: siga, animal…
O cordel acima ilustra uma das muitas possibilidades desse tipo de literatura na atualidade: a crítica  a padrões e comportamentos sociais.
É interessante perceber que o cordel não é simplesmente aquele tipo de texto poético que reclama contra os dissabores da seca no sertão nordestino ou narra as peripécias de Lampião. Assuntos os mais diversos retratados pela imprensa se transformam em estrofes nos folhetos. Hoje o poema  defende o planeta, conta-nos experiências bem sucedidas em diversas áreas, faz-nos rir, refletir ou chorar.                     
 
O que é a Literatura de Cordel?
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Literatura de cordel é um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome que vem lá de Portugal, que tinha a tradição de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, herdamos o nome (embora o povo chame esta manifestação de folheto), mas a tradição do barbante não perpetuou.
Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou não estar exposto em barbantes. São escritos em forma rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas. As estrofes mais comuns são as de dez, oito ou seis versos. Os autores, ou cordelistas, recitam esses versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou declamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis compradores.
História
A história da literatura de cordel começa com o romanceiro luso-espanhol da Idade Média e do Renascimento. O nome cordel está ligado à forma de comercialização desses folhetos em Portugal, onde eram pendurados em cordões, lá chamados de cordéis. Inicialmente, eles também continham peças de teatro, como as de autoria de Gil Vicente (1465-1536).Foram os portugueses que trouxeram o cordel para o Brasil desde o início da colonização. Na segunda metade do século XIX começaram as impressões de folhetos brasileiros, com características próprias daqui. Os temas incluem desde fatos do cotidiano, episódios históricos, lendas , temas religiosos, entre muitos outros. As façanhas do cangaceiro Lampião (Virgulino Ferreira da Silva, 1900-1938) e o suicídio do presidente Getúlio Vargas (1883-1954) são alguns dos assuntos de cordéis que tiveram maior tiragem no passado. Não há limite para a criação de temas dos folhetos. Praticamente todo e qualquer assunto pode virar cordel nas mãos de um poeta competente.
No Brasil, a literatura de cordel é produção típica do Nordeste, sobretudo nos estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Costumava ser vendida em mercados e feiras pelos próprios autores. Hoje também se faz presente em outros Estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. O cordel hoje é vendido em feiras culturais, casas de cultura, livrarias e nas apresentações dos cordelistas(...)
Essa literatura apresenta vários aspectos interessantes e dignos de destaque:
*As suas gravuras, chamadas xilogravuras, representam um importante espólio do imaginário popular;
*Pelo fato de funcionar como divulgadora da arte do cotidiano, das tradições populares e dos autores locais (lembre-se a vitalidade deste gênero ainda no nordeste do Brasil), a literatura de cordel é de inestimável importância na manutenção das identidades locais e das tradições literárias regionais, contribuindo para a perpetuação do folclore nacional;
*Pelo fato de poderem ser lidas em sessões públicas e de atingirem um número elevado de exemplares distribuídos, ajudam na disseminação de hábitos de leitura e lutam contra o analfabetismo;
*A tipologia de assuntos que cobrem, crítica social e política e textos de opinião, elevam a literatura de cordel ao estandarte de obras de teor didático e educativo.
                                                                     
 Apesar de ser visto com preconceito por parte da sociedade e de parecer uma "literatura marginal", o cordel  conta com inúmeros adeptos, cantadores e autores. São poetas que não se restringem  apenas à literatura, porém ampliam sua arte na xilogravura e nos improvisos cantados. Eles estão por aí, no Nordeste, em São Paulo, no Rio de Janeiro, nas feiras e praças e outros mercados onde a tradição nordestina é difundida.
Os cordéis são vendidos também em livrarias, bancas de jornais e por feirantes que expõem e vendem os folhetos, ou seja, por todos que desejam difundir essa cultura.
O vendedor de cordel (ambulante)  geralmente se instala em algum lugar, praça, calçada e expõe os folhetos no chão. Escolhe um tema que seja  popular e começa a ler ou cantar o folheto em voz alta. O público se reúne  para ouvi-lo, mas quando se aproxima do final da narrativa  ele a interrompe, deixando um suspense no ar. Começam então as vendas. 
 Um dos poetas da literatura de cordel que fez mais sucesso até hoje foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Acredita-se que ele tenha escrito mais de mil folhetos. Mais recentes, podemos citar os poetas José Alves Sobrinho, Homero do Rego Barros, Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva), Téo Azevedo. Zé Melancia, Zé Vicente, José Pacheco da Rosa, Gonçalo Ferreira da Silva, Chico Traíra, João de Cristo Rei e Ignácio da Catingueira.
Listar quais foram os melhores cordelistas do passado ou quem são os maiores da atualidade incorreria em certo subjetivismo . Muitos são os nomes e a Academia Brasileira de Literatura de Cordel tem um site em que está registrada boa parte da história e obra  desses poetas: http://www.ablc.com.br/.
Veja também: http://www.arteducacao.pro.br/Cultura/cordel/cordel.htm.
Há inúmeros outros  sites dedicados à literatura de cordel e para meu contentamento, que sou apreciadora desse gênero, percebe-se um crescimento tanto no número de interessados na divulgação dessa arte quanto no de cordelistas de todas as idades, regiões e classes sociais.

Para finalizar, transcrevo o cordel "A peleja de Leandro Gomes com uma Velha de Sergipe" -  Leandro Gomes de Barros (1865-1918).
São 63 sextilhas a narrar tal peleja.                             
 A  peleja de Leandro Gomes com uma velha de Sergipe
Leandro Gomes de Barros
Eu ainda estava orelhudo
Com estes versos que faço
Porque nunca achei poeta
Que me fizesse embaraço
Porém uma velha agora
Quase me quebra a cachaça

A velha fez-me subir
Onde nem urubu vai
Andei numa dependura
Já está cai ou não cai
Ainda chamei tio o gato
Tratei cachorro por pai

Quando partiu foi babando
O corpo vinha tremendo
Antes de dar boa noite
De longe me foi dizendo:
"Meu amigo eu venho metê-lo
Entre um quente e dois fervendo"

Eu sei que o senhor é duro
Eu cá sou da mansidão
Porém só pode salvar-se
Se eu lhe der a certidão
Pois o boi na terra alheia
Até as vacas lhe dão

Eu andava nos meus negócios
No estado de Sergipe
Uma noite me hospedei
Em casa de um tal Felipe
Aonde havia uma velha
Da serra do Araripe

Disse-me o dono da casa:
— Eu aqui tenho um colosso
Uma poetisa velha
Que dá em poeta moço
Quem faz verso nesta terra
Está hoje comendo grosso

Eu disse: — Senhor Felipe
Garanto a vossa mercê
Que neste planeta terra
Não há mulher que me dê
O velho olhou para mim
E perguntou-me: — Por quê?

E disse: — Digo-lhe já
Moleque não me dá vaia
Parola não me intimida
Nem pabulagens me ensaia
E nas unhas dessa velha
Não há duro que não caia

Disse o velho: — Sr. Barros
A velha é prova de fogo
Discute com qualquer um
E não precisa de rogo
Eu disse: — Traga ela cá
A boca é quem faz o jogo

O velho Felipe disse:
— Venha cá dona Manhosa
Se apronte para ver
A questão mais perigosa
A velha de lá soltou
Uma risada gostosa

A velha disse: — Já vou
E com pouco mais saiu
Então chegando na sala
Torceu a cara e cuspiu
Sentou-se num banco velho
Tomou tabaco e tossiu

Eu quando vi a marmota
Alta, seca e carrancuda
Tirar-me uns olhos cinzentos
Se conservando sisuda
Eu disse com meus botões
Não há santo que me acuda

Então perguntou ali:
— Felipe para que me quer?
Chamou-me com tal vexame
Que nem aprontei-me sequer!
— Para mostrar-lhe o escrito
De peso de uma mulher

A velha cravou-me a vista
E fez um calcarejado
Olhou-me de baixo acima
Botou os quartos de um lado
Rosnou e partiu a mim
De chapéu de sol armado

Chegou e disse: — Sr. Barros
Eu desejava encontrá-lo
Porque pelos seus escritos
Não deixo de censurá-lo
Só quem não tem consciência
Deixará de criticá-lo

Eu disse: — Minha senhora
São os revezes da sorte
O gênio tem dois destinos:
É um fraco e outro forte
Uns blasfemam contra a vida
Outros aplaudem a morte

Perguntou ela: - Por que?
Fala o senhor de mulher?
Não aprendeu desculpar
As faltas que uma tiver?
Nem a sua própria mãe
Você não irá sequer

Respondi: — Minha senhora
Isto não quer dizer nada
Eu não falo sobre a honra
De uma donzela ou casada
Digo apenas, a mulher
É uma carga pesada

Ela suspirou e disse:
— Fique certo meu amigo
Que para qualquer mulher
Casamento é um perigo
Casar-se com certos homens
Não dar-se maior castigo

Eu disse a ela: — Colega
Você pode calcular
Uma mulher fica em casa
O homem vai trabalhar
Com o suor de seu rosto
Ganho para ela estragar

A velha disse: — Não há
Marido sem mau costume
Quando não é cachaceiro
É vadio e tem ciúme
Nestas condições assim
Não há mulher que se arrume

Eu disse: — Minha senhora
O homem é um inocente
Trabalha para viver
Até morrer ou ficar doente
Ela que fica em casa
Estraga danadamente

Sai logo de madrugada
Vai ao campo trabalhar
A mulher fica deitada
Sem nada a incomodar
De nove para dez horas
É que vai se levantar

A velha diz isto assim:
— É coisa que não convém
Quem trabalha o dia inteiro
Há de descansar também
A mulher não é de ferro
Nem escrava de ninguém

— A senhora fique certa
O que digo é com razão
A mulher geme sem dor
E gesta sem precisão
Casamento é para o homem
É ascarosa prisão

Disse a velha: —- Meu senhor
Não há marido que sirva
Por melhor que a mulher seja
Trabalhadora e ativa
Ele traz a vista nela
É capaz de a comer viva

Eu disse: — Minha senhora
Marido nenhum faz isso
Sacrificar-se por ela
Isso é claro e bem visto
Ela diz com seus botões
Carrego a madeira, Cristo

Disse a velha: — Vossa mercê
Não parece ser casado
Se achou mulher que coisse
Eu lamento o seu estado
Como também me parece
Que o senhor foi enjeitado

Eu aí pensei um pouco
E disse com meus botões:
Essa cabra velha tem
Miseráveis expressões
Agora me deu o título
De filho de dez tostões

Disse a velha: — Porque acha
Pesado assim a mulher
E diz que é um animal
Que nele não há mister
Só por ela lhe pedir
O que em casa não tiver?

Levanta que a mulher pede
Verdura, fruta e toucinho
Banha, massa de tomate
Alho, pimenta, cominho
Se não pedir ao marido
Há de pedir ao vizinho?

O senhor diz que a mulher
De todas formas atrasa
Porque o pires quebrou-se
O bule largou a asa
A chaleira está velha
No fogo fura-se e vaza

Não querendo despesa
Procure um jeito qualquer
Faça de uma cuia um prato
E de um espeto talher
Deixe de comprar fazenda
Viva nu com a mulher

Eu disse dentro de mim
O que serpente assanhada
Qual seria a cascavel
Quem pariu essa danada
Fiz logo sinal da cruz
Disse: votes excomungada

Lhe disse: — A senhora sabe
Que a mulher é uma cruz
E sofre mais do que Cristo
O marido que a conduz
É um cego no deserto
Vaga sem guia e sem luz

Disse ela: — E a mulher
A que ponto vem chegar?
Haverá maior sentença
Do que uma se casar?
Só ela pensa no genro
Que a mãe tem que suportar

Eu disse: — Minha senhora
Ainda não ouvir dizer
Que um genro neste mundo
Fizesse a sogra sofrer
Só esse nome de sogra
Faz ele todo tremer

A velha disse: — O senhor
É muito livre em falar
Põe defeito em quem criou
Uma filha para te dar
Você agradece tanto
Quem paga em maltratar

O senhor chora a despesa
Que com a família tem
Para que foi se casar?
Não obrigou ninguém
A mulher está na razão
De fazer queixa também

Ele vai para o trabalho
Volta a hora que quiser
Deixando com que em casa
Pode ordenar a mulher
E escolher da cozinha
A comida que quiser

Vem cansado chega em casa
Deita-se e vai descansar
Ela vai para cozinha
Fazer almoço e jantar
Depois da mesa está posta
A mulher vai o chamar

Acorda-o com muito jeito
Trata-o com muito carinho
Diz o jantar está pronto
Vamos jantar meu negrinho
Eu esperei por você
Você não janta sozinho

Me diga agora, senhor
O que quer que a mulher faça
Além de criar a família
Suportar mais a desgraça
Ter um marido vadio
Que jogue e beba cachaça

Quando no fim da semana
Vai o homem fazer a feira
Gasta o dinheiro das compras
No jogo e na bebedeira
A mulher passando em casa
Com fome a semana inteira

Porque ele não traz nada
A pobre infeliz não come
Se os pais não morassem perto
Ela teria que passar fome
Pois o marido lhe trouxe
Cachaça, empurrão e nome

Eu pergunto-lhe: — A senhora
Teve em algum tempo marido?
— Tive quatro disse ela
Cada qual mais atrevido
Ainda dou graças a Deus
Eles já terem morrido

Eu disse: — Minha senhora
Eu quero lhe confessar
Infeliz de um desses quatro
Que chegasse a escapar
Os sofrimentos de todos
Qualquer pode calcular

Ela disse: — Sim, senhor
No brando o senhor se estende
Não venha com panos mornos
Aonde tem quem entende
Quem por si julgar a mim
Já vê que assim não me ofende

Eu não fui tão mal casada
Como senhor está pensando
Tive poucas desavenças
Sempre estava tolerando
Tive muita paciência
Meu gênio sempre foi brando

Mas meu primeiro marido
Fez-me demais esta assim:
Para casar-se com outra
Tencionava me dar fim
O segundo envenenou-se
E não era o mais ruim

O terceiro desgostou
Por eu não ser muito alva
Dizia sempre por fora
Que eu o envergonhava
Sabe o que fez uma vez?
Quis me vender como escrava

O quarto era homem sério
Dizia ser bom marido
Esse só faltou fazer-me
Beber chumbo derretido
Roubou-me para jogar
Sapatos, xale e vestido

E assim mesmo o senhor
Só se refere à mulher
Contar as faltas do homem
Isso o senhor não quer
Eu tenho lembrança
Digo tudo que um tiver

Eu disse: — Vossa mercê
É uma fera no campo
Bafejo de sua boca
Onde bater tira o tampo
Seu pensamento é a cólera
E sua língua sarampo

Disse a velha: — Sim senhor
Você gosta de ferir
Agrava a quem não lhe ofende
E pode até lhe servir
É desses que quer dizer
Porém não gosta de ouvir

Então eu lhe perguntei:
— Já acabou de falar?
— Não principiei agora
Inda tenho o que falar
Eu sou velha neste mundo
Não ando por ver andar

Eu disse: — Também sou velho
Sou corrido e traquejado
Eu tenho visto as misérias
Que no mundo tem se dado
E milhares de mulheres
As manhas têm me ensinado

Uma mocinha solteira
Dana-se para namorar
Com mesuras e carinhos
Faz o homem se levar
Para iludi-lo, chora
E sorri para o matar

A mulher é o objeto
A quem eu quero mais bem
Não há quem conte as maldades
Que a mulher consigo tem
Todos acreditam nela
Ela não crê em ninguém

Então a velha me disse:
— O homem é malicioso
Entre os homens verdadeiro
Tira-se o mais mentiroso
Cheio de sofismações
Impuro pecaminoso

Quando a velha se calou
Que deu-se fim à contenda
Eu disse: Só no inferno
Se achará desta fazenda
Foi o diabo sem dúvida
Que mandou-me esta encomenda

Eu ainda não tinha achado
Quem fizesse eu me calar
Mas a demanda da velha
Fez até eu me engasgar
Botou-me em cantos tão feios
Que eu não julguei mais voltar

Quando foi no outro dia
Arrumei-me, fui embora
Com medo que a tal serpente
Tornasse a vir cá fora
Jurei não voltar mais
Aonde o tal diabo mora
Nesse embate, podemos constatar que, na visão do homem, a mulher leva vantagens no casamento em relação ao marido. A senhora de Sergipe questiona as qualidades do marido, sem contudo questionar sua submissão à situação de domínio patriarcal, que  era o que imperava no início do século.










 

 





















































 





















 



terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Mario de Sá-Carneiro

Aprecio bastante as obras de Mário de Sá-Carneiro, embora muitas pessoas considerem-nas depressivas. Das obras em prosa, vale a pena ler o conto "Loucura", que evidencia o talento do jovem escritor do início do século XX para outros gêneros além da poesia.
Postei abaixo dois  poemas: "Quase" e "Como eu não possuo".
A leitura da biografia pode ajudar você a compreender  um pouco  mais  a personalidade do autor, seu estilo, influências de pessoas, situações e lugares que lhe permearam a produção literária.
Abraços,
Cida.                                     Quase
                                           Um pouco mais de sol - eu era brasa,
                                           Um pouco mais de azul - eu era além.
                                           Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
                                           Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão ...Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido..
                                          Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
                                          Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
                                          Mas na minh'alma tudo se derrama...
                                          Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
       Ânsias que foram mas nunca mais fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

                                                     Num ímpeto difuso de quebranto
                                                     Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro
  Como eu não possuo
                                           Olho em volta de mim. Todos possuem ---
                                           Um afecto, um sorriso ou um abraço.
                                           Só para mim as ânsias se diluem
                                           E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!
                                            Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
                                            Não posso afeiçoar-me nem ser eu
                                            Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
                                            Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse --- ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
                                         Castrado de alma e sem saber fixar-me,
                                         Tarde a tarde na minha dor me afundo...
                                         Serei um emigrado doutro mundo
                                         Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...
                                        Desejo errado... Se a tivera um dia,
                                        Toda sem véus, a carne estilizada
                                        Sob o meu corpo arfando transbordada,
                                        Nem mesmo assim --- ó ânsia! --- eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

                               De embate ao meu amor todo me ruo,
                                E vejo-me em destroço até vencendo:
                                É que eu teria só, sentindo e sendo
                                Aquilo que estrebucho e não possuo.
Mário de Sá-Carneiro
                                                                                                      Sobre o autor
Nasceu, no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos (1892), ficou entregue ao cuidado dos avós, indo viver para a Quinta da Vitória, na freguesia de Camarate, às portas de Lisboa, aí passando grande parte da infância.
Inicia-se na poesia com doze anos, sendo que aos quinze já traduzia Victor Hugo, e com dezesseis, Goethe e Schiller. No liceu teve ainda algumas experiências episódicas como ator, e começa a escrever.
Em 1911, com dezenove anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de Direito, mas não conclui sequer o ano. Aí, contudo, viria a conhecer aquele que foi, sem dúvida, o seu melhor e mais compreensivo amigo – Fernando Pessoa –, o qual, em 1912, o introduziu no ciclo dos modernistas.
Desiludido com a «cidade dos estudantes», segue para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-se a uma vida boêmia, deambulando pelos cafés e salas de espetáculo, chegando a passar fome e debatendo-se com os seus desesperos, situação que culminou na ligação emocional a uma prostituta, a fim de combater as suas frustrações e desesperos.
Na capital francesa viria a conhecer Guilherme de Santa-Rita (Santa-Rita Pintor). Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Pessoa; é, pois, entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte), que se inscreve a sua fugaz – e no entanto assaz profícua – carreira literária.
Entre 1913 e 1914 vai a Lisboa com certa regularidade, regressando à capital devido à deflagração do conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, o qual a breve trecho se tornou uma conflagração à escala europeia – a I Guerra Mundial. Com Pessoa e ainda Almada-Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português (o qual, influenciado pelo cosmopolitismo e pelas vanguardas culturais europeias, pretendia escandalizar a sociedade burguesa e urbana da época), sendo responsável pela edição da revista literária Orpheu (e que por isso mesmo ficou sendo conhecido como a Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu), um verdadeiro escândalo literário à época, motivo pelo qual apenas saíram dois números (Março e Junho de 1915; o terceiro, embora impresso, não foi publicado, tendo os seus autores sido alvo da chacota social) – ainda que hoje seja, reconhecidamente, um dos marcos da história da literatura portuguesa, responsável pela agitação do meio cultural português, bem como pela introdução do modernismo em Portugal.
Em Julho de 1915 regressa a Paris, escrevendo a Pessoa cartas de uma crescente angústia, das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do processo de escrita de Sá-Carneiro.
Uma vez que a vida que trazia não lhe agradava, e aquela que idealizava tardava em se concretizar, Sá-Carneiro entrou numa cada vez maior angústia, que viria a conduzi-lo ao seu suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina.
Contava tão-só vinte e seis anos. Extravagante tanto na morte como em vida (de que o poema Fim é um dos mais belos exemplos), convidou para presenciar a sua agonia o seu amigo José de Araújo. E apesar de o grupo modernista português ter perdido um dos seus mais significativos colaboradores, nem por isso o entusiasmo dos restantes membros esmoreceu – no segundo número da revista Athena, Pessoa dedicou-lhe um belo texto, apelidando-o de «génio não só da arte como da inovação dela», e dizendo dele, retomando um aforismo das Báquides (IV, 7, 18), de Plauto, que «Morre jovem o que os Deuses amam» (tradução literal de Quem di diligunt adulescens moritur).
Verdadeiro insatisfeito e inconformista (nunca se conseguiu entender com a maior parte dos que o rodeavam, nem tão pouco ajustar-se à vida prática, devido às suas dificuldades emocionais), mas também incompreendido (pelo modo com os contemporâneos olhavam o seu jeito poético), profetizou acertadamente que no futuro se faria jus à sua obra, no que não falhou.
Com efeito, reconhecido no seu tempo apenas por uma fina elite, à medida que a sua obra e correspondência foi publicada, ao longo dos anos, tornou-se acessível ao grande público, sendo atualmente considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna em língua portuguesa. (...)
A terra que o acolheu na infância – Camarate –, e a quem ele dedicou também algumas das suas poesias, homenageou-o, conferindo o seu nome a uma escola local. O seu poema Fim foi musicado por um grupo português no final dos anos 1980, os Trovante. Mais tarde, o seu poema O Outro foi também musicado pela cantora brasileira Adriana Calcanhotto.
As suas influências literárias são de Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Fiódor Dostoievski, Cesário Verde e António Nobre. Este escritor influenciou vários escritores, entre eles Eugénio de Andrade.
Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias, como o decadentismo, o simbolismo, ou o saudosismo, então em franco declínio; posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como o interseccionismo, o paulismo ou o futurismo.
Nessas pôde exprimir com à-vontade a sua personalidade, sendo notórios a confusão dos sentidos, o delírio, quase a raiar a alucinação; ao mesmo tempo, revela um certo narcisismo e egolatria, ao procurar exprimir o seu inconsciente e a dispersão que sentia do seu «eu» no mundo – revelando a mais profunda incapacidade de se assumir como adulto consistente.
O narcisismo, motivado certamente pelas carências emocionais (era órfão de mãe desde a mais terna puerícia), levou-o ao sentimento da solidão, do abandono e da frustração, traduzível numa poesia onde surge o retrato de um inútil e inapto. A crise de personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota o frenesi de experiências sensórias, pervertendo e subvertendo a ordem lógica das coisas, demonstrando a sua incapacidade de viver aquilo que sonhava – sonhando por isso cada vez mais com a aniquilação do eu, o que acabaria por o conduzir, em última análise, ao seu suicídio.
Embora não se afaste da metrificação tradicional (redondilhas, decassílabos, alexandrinos), torna-se singular a sua escrita pelos seus ataques à gramática, e pelos jogos de palavras. Se numa primeira fase se nota ainda esse estilo clássico, numa segunda, claramente niilista, a sua poesia fica impregnada de uma humanidade autêntica, triste e trágica.
Por fim, as cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o seu suicídio, são como que um autêntico diário onde se nota paralelamente o crescimento das suas frustrações interiores.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro