sábado, 23 de janeiro de 2010

Procura da Poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.


O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.


Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.


Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.


Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?


Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Nasceu em ltabira (MG) em 1902. Fez os estudos secundários em Belo Horizonte, num colégio interno, onde permaneceu até que um período de doença levou-o de novo para ltabira. Voltou para outro internato, desta vez em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Pouco ficaria nessa escola: acusado de "insubordinação mental" - sabe-se lá o que poderia ser isso! -, foi expulso do colégio. Em 1921 começou a colaborar com o Diário de Minas. Em 1925, diplomou-se em farmácia, profissão pela qual demonstrou pouco interesse. Nessa época, já redator do Diário de Minas, tinha contato com os modernistas de São Paulo. Na Revista de Antropofagia publicou, em 1928, o poema "No meio do caminho", que provocaria muito comentário.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Ingressou no funcionalismo público e em 1934 mudou-se para o Rio de Janeiro. Em agosto de 1987 morreu-lhe a única filha, Julieta. Doze dias depois, o poeta faleceu. Tinha publicado vários livros de poesia e obras em prosa - principalmente crônica. Em vida, já era consagrado como o maior poeta brasileiro de todos os tempos.
O nome de Drummond está associado ao que se fez de melhor na poesia brasileira. Pela grandiosidade e pela qualidade, sua obra não permite qualquer tipo de análise esquemática. Para compreender e, sobretudo, sentir a obra desse escritor, o melhor caminho é ler o maior número possível de seus poemas.
De acontecimentos banais, corriqueiros, gestos ou paisagens simples, o eu-lírico extrai poesia. Nesse caso enquadram-se poemas longos, como "O caso do vestido" e "O desaparecimento de Luísa Porto ", e poemas curtos, como "Construção".
O primeiro poema de Alguma poesia é o conhecido "Poema de sete faces", do qual transcreve-se a primeira estrofe:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

A palavra gauche (lê-se gôx), de origem francesa, corresponde a "esquerdo" em nosso idioma. Em sentido figurado, o termo pode significar "acanhado", " inepto". Qualifica o ser às avessas, o "torto", aquele que está à margem da realidade circundante e que com ela não consegue se comunicar. É assim que o poeta se vê. Logicamente, nesta condição, estabelece-se um conflito: "eu " do poeta X realidade. Na superação desse conflito, entra a poesia, um veículo possível de comunicação entre a realidade interior do poeta e a realidade exterior.
Variantes da palavra gauche - como esquerdo, torto, canhestro - aparecem por toda a obra de Drummond, revelando sempre a oposição eu-lírico X realidade externa, que se resolverá de diferentes maneiras.
Muitos poemas de Drummond funcionam como denúncia da opressão que marcou o período da Segunda Grande Guerra. A temática social, resultante de uma visão dolorosa e penetrante da realidade, predomina em Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945), obras que não fogem a uma tendência observável em todo o mundo, na época: a literatura comprometida com a denúncia da ascensão do nazi-fascismo.
A consciência do tenso momento histórico produz a indagação filosófica sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta só encontra uma resposta pessimista.
O passado ressurge muitas vezes na poesia de Drummond e sempre como antítese para uma realidade presente. A terra natal - ltabira - transforma-se então no símbolo da atmosfera cultural e afetiva vivida pelo poeta. Nos primeiros livros, a ironia predominava na observação desse passado; mais tarde, o que vale são as impressões gravadas na memória. Transformar essas impressões em poemas significa reinterpretar o passado com novos olhos. O tom agora é afetuoso, não mais irônico.
Da análise de sua experiência individual, da convivência com outros homens e do momento histórico, resulta a constatação de que o ser humano luta sempre para sair do isolamento, da solidão. Neste contexto questiona-se a existência de Deus.
Nos primeiros livros de Drummond, o amor merece tratamento irônico. Mais tarde, o poeta procura capturar a essência desse sentimento e só encontra - como Camões e outros - as contradições, que se revelam no antagonismo entre o definitivo e o passageiro, o prazer e a dor. No entanto, essas contradições não destituem o amor de sua condição de sentimento maior. A ausência do amor é a negação da própria vida. O amor-desejo, paixão, vai aparecer com mais frequência nos últimos livros.
Depois da morte de Drummond, reuniu-se no livro O amor natural uma série de poemas eróticos mantidos em sigilo e que foram associados a um suposto caso extraconjugal mantido pelo poeta. Verdadeiro ou não o caso, interessa é que se trata de poemas bem audaciosos, em que se explora o aspecto físico do amor. Alguns verão pornografia nestes poemas; outros, o erotismo transformado em linguagem da melhor qualidade poética.
Metalinguagem: a reflexão sobre o ato de escrever fez parte das preocupações do poeta.
O tempo é um dos aspectos que concede unidade à poesia de Drummond: o tempo passado, o presente e o futuro como tema.
Toda a trajetória do poeta - qualquer que seja o assunto tratado - marca-se por uma tentativa de conhecer-se a si mesmo e aos outros homens, através da volta ao passado, da adesão ao presente e da projeção num futuro possível.
O passado renasce nas reminiscências da infância, da adolescência e da terra natal. A adesão ao presente concretiza-se quando o poeta se compromete com a sua realidade histórica (poesia social). O tempo futuro aparece na expectativa de um mundo melhor, resultante da cooperação entre todos os homens.

Obra
Poesia: Alguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Sentimento do mundo (1940); Poesias (1942); A rosa do povo (1945); Claro enigma (1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1954); A vida passada a limpo (1959); Lição de coisas (1962); Boitempo (1968); As impurezas do branco (1973); A paixão medida (1980); Corpo (1984); Amar se aprende amando (1985); O amor natural (1992).
Prosa: Confissões de Minas (1944) - ensaios e crônicas; Contos de aprendiz (1951); Passeios na ilha (1952) - ensaios e crônicas; Fala, amendoeira (1957) - crônicas; A bolsa e a vida (1962) - crônicas e poemas; Cadeira de balanço (1970); O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972) - crônicas; Boca de luar (1984) - crônicas; Tempo vida poesia (1986).
http://www.culturabrasil.pro.br/cda.htm
*Poemas  na voz do próprio Drummond :
http://www.memoriaviva.com.br/drummond/verso.htm
*Resumo biográfico e bibliográfico:


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Bagagem - Adélia Prado

QUEM É ADÉLIA PRADO?



Adélia Luzia Prado Freitas (Divinópolis - MG, 13 de dezembro de 1935).
Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único.
Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”.
Adélia é também referência constante na obra de Rubem Alves.
Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que sua carreira de escritora tornou-se sua atividade central.
Em termos de literatura brasileira, o surgimento de Adélia representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, ainda que maternal, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona-de-casa; por isso sendo considerada como a que encontrou um equilíbrio entre o feminino e o feminismo, movimento cujos conflitos não aparecem em seus textos.

AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.


Bagagem
O livro Bagagem, foi a primeira publicação de Adélia Prado, de 1976, por indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Em seu poema "Fluência", ela relatou a sensação da estreia: "O meu alívio foi constatar que depois da festa o mundo continuava igual e a perplexidade que gerou Bagagem continuava intacta. Foi ver que a poesia não desertara de mim".
Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. Bagagem chamou a atenção da crítica pelo jeito diferente que a autora tem de dizer as coisas que sente e vê.
Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo frequentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:
CONFEITO
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.

É a poesia do cotidiano, não do grandiloquente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela - dos modernistas a Mário Quintana-, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade.
A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com licença poética", que inicia Bagagem, é exemplar.
Os primeiros poemas de Adélia Prado, publicados em Bagagem, procuram definir a imagem da poeta. Em "Com licença poética", ela assume sua sina de mulher-poeta ao passo em que se apresenta de forma simples e grandiosa ao mesmo tempo; sem deixar de explicitar suas antíteses, ou seja, as contradições do universo feminino, bem como suas diferenças diante do universo masculino.
O poema "Com licença poética" parafraseia o "Poema de Sete Faces", de Drummond:
Poema de Sete Faces
Quando nasci,
um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos!
ser “gauche” na vida.
(C. Drummond de Andrade)

No  início (primeiro verso), fica explícita a intertextualidade com o poema de Carlos Drummond de Andrade, na qual a poeta deixa claro  sua diferenciação. No lugar  de "um anjo torto", como no poema de Drummond, aparece então um anjo esbelto que representa o  surgimento do eu-lírico do poema "Com licença poética".


COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
                                                                    
                                                                
GRANDE DESEJO
Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Jardim de Inverno - Pablo Neruda

Publicado pela primeira vez em 1975, jardim de inverno é um dos vários livros póstumos de Pablo Neruda. O livro integra aquela que é conhecida como a última fase poética do autor, reunindo versos escritos entre 1971, ano em que o poeta chileno foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, e 1973, ano da morte de Neruda.
Em Jardim de inverno, encontraremos um Neruda com menos preocupações sociais e políticas do que o da fase anterior e mais voltado para o mistério da vida da qual está se despedindo. São versos líricos e melancólicos, mas nunca autocomplacentes ou totalmente desprovidos do humor característico do poeta. Fazendo um balanço final e reafirmando sua profissão de fé, Neruda não consegue fazer outra coisa que não poesia do mais alto nível: "Que posso fazer se me escolheu a estrela/ para ser um relâmpago, e se o espinho/ me conduziu à dor de alguns que são muitos?/ O que fazer se cada movimento/ de minha mão me aproximou da rosa?".

Entre os muitos poemas do livro  destaca-se:

A pele da bétula

Pablo Neruda

Como uma pétala de bétula
és prateada e perfumada:
tenho que contar com teus olhos
ao descrever a primavera.

Mesmo não sabendo o teu nome
não há primeiro tomo sem mulher:
os livros se escrevem com beijos
(e eu lhes rogo que se calem
para que se aproxime a chuva).

Quero dizer que entre dois mares
a minha altura pendurou-se
como uma bandeira abatida.
E por minha amada sem olhar
estou disposto até a morrer
embora se atribua minha morte
ao meu deficiente organismo
e à tristeza desnecessária
depositada nos roupeiros.
O certo é que o tempo se escapa
e com voz de viúva me chama
desde estes bosques esquecidos.

Antes de ver o mundo,  então,
quando meus olhos não se abriam
eu já dispunha de quatro olhos:
os meus próprios e os do meu amor:
não me perguntem se eu mudei
(e só o tempo é que envelhece)
(vive mudando de camisa
enquanto eu sigo caminhando).

E todos os lábios do amor
fizeram a minha roupagem
desde que me senti desnudo:
ela se chamava Maria
(talvez Teresa se chamasse),
e me acostumei a caminhar
consumido em minhas paixões.

Sendo tu a que tu serás
mulher inata do meu amor,
a que do barro foi formada
ou a feita de plumas que voou
ou a mulher territorial
de cabeleira na folhagem
ou esta concêntrica caída
igual a uma moeda desnuda
no tanque dum topázio
ou a presente cuidadora
da minha errada indisciplina
ou bem a que nunca nasceu
e que eu espero desde sempre.

Porque a luz da bétula
é a pele da primavera.

Mais sobre o autor em:
http://www.lpm-editores.com.br/v3/livros/layout_autor.asp?ID=62

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Esperança

                             Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano


Vive uma louca chamada Esperança


E ela pensa que quando todas as sirenas


Todas as buzinas


Todos os reco-recos tocarem


Atira-se


E


— ó delicioso vôo!


Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,


Outra vez criança...


E em torno dela indagará o povo:


— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?


E ela lhes dirá


(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)


Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:


— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Texto extraído do livro "Nova Antologia Poética", Editora Globo - São Paulo, 1998, pág. 118.
Biografia completa em:
http://www.releituras.com/mquintana_bio.asp

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O Florentino

Era uma vez um florentino que todas as noites participava de serões e ouvia as pessoas que tinham viajado e visto o mundo conversarem. Ele não tinha nada para contar, pois vivera sempre em Florença, e achava que fazia papel de bobo.
E assim lhe deu vontade de viajar; não teve paz enquanto não vendeu tudo, fez as malas e partiu. Anda que anda, escureceu, e ele pediu pousada para a noite na casa de um pároco. O pároco o convidou para jantar e comendo lhe perguntava o porquê da sua viagem. Ao ouvir que o florentino viajava para depois regressar a Florença e ter algo para contar, disse:
— Várias vezes tive o mesmo desejo; quem sabe, caso não lhe desagrade, não poderíamos ir juntos?
— Imagine – disse o florentino. — Parece mentira encontrar companhia.
E na manhã seguinte partiram juntos, o florentino e o pároco.
A noite, chegaram a uma feitoria. Pediram abrigo e o dono perguntou:
— E por que estão viajando? — Quando soube o motivo, também ele ficou com vontade de viajar e ao amanhecer partiu com eles.
Os três andaram muito juntos, até chegar ao palácio de um gigante.
— Vamos bater – disse o florentino -, assim quando voltarmos para casa teremos historias de um gigante para contar.
O gigante veio abrir pessoalmente e os hospedou.
— Se quiserem ficar comigo – disse depois -, aqui na paróquia me falta um pároco, na feitoria me falta um feitor, e quanto ao florentino, embora não tenha necessidade de florentinos, também para ele se achará um lugar.
Os três conversaram:
— Bem, trabalhando para um gigante, certamente veremos coisas extraordinárias; imaginem quantas coisas poderemos contar depois! — E aceitaram. Ele os levou para dormir e combinaram que no dia seguinte acertariam tudo.
No dia seguinte o gigante disse ao pároco:
— Venha comigo que lhe mostro a papelada da paróquia. — E o conduziu para um aposento.
O florentino, que era um grande curioso e não queria perder a ocasião de ver coisas interessantes, pôs o olho no buraco da fechadura e viu que, enquanto o pároco se inclinava para ver a papelada, o gigante ergueu um sabre, cortou-lhe a cabeça e jogou o corpo e a cabeça num alçapão.
“Esta sim, será uma boa para contar lá em Florença”, pensou o florentino. “O problema é que não vão acreditar em mim.”
— Já encaminhei o pároco – disse o gigante -, agora vou cuidar do feitor; venha que lhe mostro a papelada da feitoria.
E o feitor, sem suspeitar de nada, seguiu o gigante até aquele aposento.
O florentino, pelo buraco da fechadura, viu-o inclinar-se sobre a papelada e depois o sabre do gigante se abater entre a cabeça e pescoço. A seguir, o decapitado acabou no alçapão.
Já estava se regozijando com tantas coisas extraordinárias que poderia contar na volta, quando percebeu que depois do pároco e do feitor seria a vez dele e que, portanto, não poderia contar absolutamente nada. E lhe veio um grande desejo de fugir, mas o gigante saiu do aposento e lhe disse que antes de tratar dele preferia almoçar. Sentaram-se a mesa, e o florentino não conseguia engolir nem um bocado e estudava um plano para escapar das mãos do gigante.
O gigante não enxergava bem com um dos olhos. Terminada a refeição, o florentino começou a dizer:
— Que pena! O senhor é tão bonito, mas esse olho...
O gigante, ao se sentir observado naquele olho, ficou incomodado e começou a se agitar na cadeira, a bater as pálpebras e a franzir as sobrancelhas.
— Sabe? — disse o florentino -, conheço uma erva que, para as doenças dos olhos, é um remédio infalível. E tenho a impressão de tê-la visto aqui no seu jardim.
— Ah, é? Ah, é? — disse logo o gigante. — Viu aqui mesmo? Então, vamos procurá-la.
E o conduziu ao prado, e o florentino, saindo, observava portas e fechaduras para ter bem claro na cabeça o meio para fugir. Num canteiro, colheu uma erva qualquer: voltaram para casa e a colocou para ferver numa panela de óleo.
— Aviso-o de que vai doer muito – disse ao gigante. — É capaz de resistir a dor sem se mexer?
— Bem, decerto... decerto resisto... — disse o gigante.
— Ouça: será melhor que para mantê-lo parado, o amarre a esta mesa de mármore; caso contrário, começa a se agitar e a operação não dá certo.
O gigante, que fazia questão de ajustar aquele olho, deixou que ele o amarrasse a mesa de mármore. Quando ele ficou amarrado como um salame, o florentino virou a panela de óleo fervente nos seus olhos, cegando-o completamente, e depois fugiu escada abaixo, pensando: “Mais essa para contar!”
Com um berro que fez a casa estremecer, o gigante se levantou e, com a mesa de mármore amarrada as costas, pôs-se a correr atrás dele as apalpadelas. Porém, percebendo que cego como estava jamais o alcançaria, recorreu a um ardil:
— Florentino! — gritou.— Florentino!, por que me abandonou? Não vai terminar a cura? Quanto quer para acabar de me curar? Quer este anel? — E lhe atirou um anel. Era um anel encantado.
— É isso – disse o florentino -, vou levá-lo para Florença e mostrá-lo a quem não acredita em mim!
Mas, assim que o recolheu e o enfiou no dedo, eis que o dedo se transforma em mármore, pesado a ponto de arrastar para o chão a mão, o braço e o corpo inteiro, fazendo-o ficar estendido. Agora o florentino não podia mais se mover, pois não aguentava com o dedo. Tentou tirar o anel do dedo, porém não conseguia. O gigante estava quase em cima dele. Desesperado, o florentino puxou uma faca do bolso e decepou o dedo: assim pôde escapar e o gigante não o encontrou mais.
Chegou a Florença com um palmo de língua para fora da boca, e lhe passara não só a vontade de correr mundo, mas também a de contar suas viagens. E, quanto ao dedo, disse que o cortara quando capinava.
                              Italo Calvino – “Fábulas Italianas”
Biografia
Italo Calvino
15/10/1923 - Santiago de Las Vegas (Cuba)
19/09/1985 - Siena (Itália)
O escritor Italo Calvino nasceu em 1923, em Cuba, por onde seus pais, cientistas italianos, estavam de passagem. Sua infância foi em San Remo, na Itália. Em 1941, matricula-se na Faculdade de Agronomia de Turim; mas abandona os estudos ao engajar-se na Resistência Italiana contra o exército nazista. Ao final da guerra, Calvino vai morar em Turim, onde se doutora em letras com uma tese sobre Joseph Conrad.
Em 1947, lança seu primeiro livro, inspirado em sua participação na Resistência. Passa a trabalhar para o jornal comunista L'Unità e, depois, na editora Einaudi. Só a partir dos anos 1950 Calvino começaria a escrever as obras que o tornaram famoso internacionalmente. Seus primeiros grandes sucessos são O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores (1957) e O Cavaleiro Inexistente (1959).
Em 1957, Calvino se desliga do Partido Comunista. Em 1972, publica Cidades Invisíveis. Se um Viajante numa Noite de Inverno, de 1979, explora com ironia a relação do leitor com a obra literária. Palomar é de 1983. Traduzidos para inúmeras línguas, os três têm lugar de destaque no repertório da literatura pós-moderna da Europa.
Calvino morreu em 1985, consagrado como um dos mais importantes escritores italianos do século 20. Entre seus muitos outros livros incluem-se Seis Propostas para o Próximo Milênio, Amores Difíceis e O Castelo dos Destinos Cruzados.
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u127.jhtm