sábado, 23 de janeiro de 2010

Procura da Poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.


O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.


Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.


Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.


Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?


Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Nasceu em ltabira (MG) em 1902. Fez os estudos secundários em Belo Horizonte, num colégio interno, onde permaneceu até que um período de doença levou-o de novo para ltabira. Voltou para outro internato, desta vez em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Pouco ficaria nessa escola: acusado de "insubordinação mental" - sabe-se lá o que poderia ser isso! -, foi expulso do colégio. Em 1921 começou a colaborar com o Diário de Minas. Em 1925, diplomou-se em farmácia, profissão pela qual demonstrou pouco interesse. Nessa época, já redator do Diário de Minas, tinha contato com os modernistas de São Paulo. Na Revista de Antropofagia publicou, em 1928, o poema "No meio do caminho", que provocaria muito comentário.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Ingressou no funcionalismo público e em 1934 mudou-se para o Rio de Janeiro. Em agosto de 1987 morreu-lhe a única filha, Julieta. Doze dias depois, o poeta faleceu. Tinha publicado vários livros de poesia e obras em prosa - principalmente crônica. Em vida, já era consagrado como o maior poeta brasileiro de todos os tempos.
O nome de Drummond está associado ao que se fez de melhor na poesia brasileira. Pela grandiosidade e pela qualidade, sua obra não permite qualquer tipo de análise esquemática. Para compreender e, sobretudo, sentir a obra desse escritor, o melhor caminho é ler o maior número possível de seus poemas.
De acontecimentos banais, corriqueiros, gestos ou paisagens simples, o eu-lírico extrai poesia. Nesse caso enquadram-se poemas longos, como "O caso do vestido" e "O desaparecimento de Luísa Porto ", e poemas curtos, como "Construção".
O primeiro poema de Alguma poesia é o conhecido "Poema de sete faces", do qual transcreve-se a primeira estrofe:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

A palavra gauche (lê-se gôx), de origem francesa, corresponde a "esquerdo" em nosso idioma. Em sentido figurado, o termo pode significar "acanhado", " inepto". Qualifica o ser às avessas, o "torto", aquele que está à margem da realidade circundante e que com ela não consegue se comunicar. É assim que o poeta se vê. Logicamente, nesta condição, estabelece-se um conflito: "eu " do poeta X realidade. Na superação desse conflito, entra a poesia, um veículo possível de comunicação entre a realidade interior do poeta e a realidade exterior.
Variantes da palavra gauche - como esquerdo, torto, canhestro - aparecem por toda a obra de Drummond, revelando sempre a oposição eu-lírico X realidade externa, que se resolverá de diferentes maneiras.
Muitos poemas de Drummond funcionam como denúncia da opressão que marcou o período da Segunda Grande Guerra. A temática social, resultante de uma visão dolorosa e penetrante da realidade, predomina em Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945), obras que não fogem a uma tendência observável em todo o mundo, na época: a literatura comprometida com a denúncia da ascensão do nazi-fascismo.
A consciência do tenso momento histórico produz a indagação filosófica sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta só encontra uma resposta pessimista.
O passado ressurge muitas vezes na poesia de Drummond e sempre como antítese para uma realidade presente. A terra natal - ltabira - transforma-se então no símbolo da atmosfera cultural e afetiva vivida pelo poeta. Nos primeiros livros, a ironia predominava na observação desse passado; mais tarde, o que vale são as impressões gravadas na memória. Transformar essas impressões em poemas significa reinterpretar o passado com novos olhos. O tom agora é afetuoso, não mais irônico.
Da análise de sua experiência individual, da convivência com outros homens e do momento histórico, resulta a constatação de que o ser humano luta sempre para sair do isolamento, da solidão. Neste contexto questiona-se a existência de Deus.
Nos primeiros livros de Drummond, o amor merece tratamento irônico. Mais tarde, o poeta procura capturar a essência desse sentimento e só encontra - como Camões e outros - as contradições, que se revelam no antagonismo entre o definitivo e o passageiro, o prazer e a dor. No entanto, essas contradições não destituem o amor de sua condição de sentimento maior. A ausência do amor é a negação da própria vida. O amor-desejo, paixão, vai aparecer com mais frequência nos últimos livros.
Depois da morte de Drummond, reuniu-se no livro O amor natural uma série de poemas eróticos mantidos em sigilo e que foram associados a um suposto caso extraconjugal mantido pelo poeta. Verdadeiro ou não o caso, interessa é que se trata de poemas bem audaciosos, em que se explora o aspecto físico do amor. Alguns verão pornografia nestes poemas; outros, o erotismo transformado em linguagem da melhor qualidade poética.
Metalinguagem: a reflexão sobre o ato de escrever fez parte das preocupações do poeta.
O tempo é um dos aspectos que concede unidade à poesia de Drummond: o tempo passado, o presente e o futuro como tema.
Toda a trajetória do poeta - qualquer que seja o assunto tratado - marca-se por uma tentativa de conhecer-se a si mesmo e aos outros homens, através da volta ao passado, da adesão ao presente e da projeção num futuro possível.
O passado renasce nas reminiscências da infância, da adolescência e da terra natal. A adesão ao presente concretiza-se quando o poeta se compromete com a sua realidade histórica (poesia social). O tempo futuro aparece na expectativa de um mundo melhor, resultante da cooperação entre todos os homens.

Obra
Poesia: Alguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Sentimento do mundo (1940); Poesias (1942); A rosa do povo (1945); Claro enigma (1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1954); A vida passada a limpo (1959); Lição de coisas (1962); Boitempo (1968); As impurezas do branco (1973); A paixão medida (1980); Corpo (1984); Amar se aprende amando (1985); O amor natural (1992).
Prosa: Confissões de Minas (1944) - ensaios e crônicas; Contos de aprendiz (1951); Passeios na ilha (1952) - ensaios e crônicas; Fala, amendoeira (1957) - crônicas; A bolsa e a vida (1962) - crônicas e poemas; Cadeira de balanço (1970); O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972) - crônicas; Boca de luar (1984) - crônicas; Tempo vida poesia (1986).
http://www.culturabrasil.pro.br/cda.htm
*Poemas  na voz do próprio Drummond :
http://www.memoriaviva.com.br/drummond/verso.htm
*Resumo biográfico e bibliográfico:


Um comentário:

  1. Olá Cida.

    Sou seu colega de ofício. Parei para observar a sua ótima iniciativa. Venho tentando através da nossa página VERDE VIDA ( fotos, opiniões, reflexões, poemas toscos ) enviar aos leitores assuntos relacionados à causa ambiental.
    Gostaria da sua visita.

    Felicidades em sua jornada!

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