quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Administração na estrada

Ontem precisava chegar a Sete lagoas às 12:25 h, no máximo, para resolver questões burocráticas com um funcionário que trabalha até as 12:30 h. Trabalho em uma escola em um povoado de Caetanópolis e meu turno de aulas termina às 11:30 h. Como o ônibus intermunicipal só passa no meu ponto às 11:50 h, 11:55 h, não conseguiria chegar ao destino pretendido dentro do horário. Então, decidi fazer uma coisa, a qual até evito por questões de segurança e outros perigos mais: fui para a rodovia esperar que passasse um "carrapeta".
Primeiramente, preciso explicar que leciono em uma escola que fica às margens da BR 040, e que carrapeta é como são conhecidos os motoristas que fazem transporte clandestino entre as cidades.
Um dia daqueles em que o sol de inverno queimava quase como se fosse o sol de verão ao meio-dia. Deu 11:35 h, 11:40 h e nada de carrapeta. Duvido que há quem goste de estar esperando ônibus. Agora, imaginem: eu, com aqueles trecos todos, bolsas, papeladas e livros, que professora geralmente carrega, aguardando de "olhos compridos" na estrada, torcendo para que surgisse logo um carro e o motorista fizesse a aguardada pergunta: "Sete Lagoas"?
Pois é... Se tivesse ficado na escola até o horário em que o ônibus passa, ou seja, 11:45 h  11:50 h, certamente não estaria queimando o rosto, o material da bolsa já quente também. Buscava um restinho de sombra embaixo daquela árvore. Mas até a árvore deixava de cumprir sua missão mais importante para mim naquele momento. Não precisava levantar muito os olhos para ver que ela estava sem folhas. Olhei para cima, para os galhos secos, já meio transtornada. E a alguns metros dali, outra árvore, linda. Seus galhos verdes resplandeciam a primavera. Pensei em mudar de lugar e ir abrigar-me debaixo dela, mas lá não era ponto e nenhum carro pararia para me perguntar se iria para SL.
Fazer o quê?
Já estava resignada e fiquei no mesmo lugar, debaixo da árvore seca e pronta a aguardar o Paraopeba/Sete Lagoas. Pelo horário não conseguiria também chegar a tempo ao local pretendido. Virei-me  um pouco de costas para a pista  a fim de  apoiar meu pé no barranco da beira da estrada e assim pegar com mais facilidade o livro não terminado que se encontrava no fundo da bolsa. Sim, iria ler, debaixo do maior sol, de uma árvore seca, com caminhões e carretas a toda velocidade a passar, muitas vezes buzinando para outros caminhoneiros ou até para mim (rsrsrsrs)...
E não é que uma voz tranquila falou: "Sete Lagoas?" Voltei-me e duas moças me olhavam com simpatia, esperando resposta, a qual veio rápida, pois meu instinto avisou-me que não era uma carona: "É o mesmo preço do ônibus?" Resposta afirmativa, entrei no carro e ocupei o banco de trás. Era um carro grande, contrastando com a motorista, que não era muito alta. Confortável, mas não sei dizer a marca ou modelo, porque sou péssima nisso, nunca guardo esses detalhes.
A garota, muito jovial, perguntou-me se eu ainda lecionava ali, naquela escola. Respondi que sim e já tinha a certeza de que ela fora minha aluna, talvez uns 7 ou 8 anos atrás. Aquele rosto não me enganava. Era daquelas alunas que têm nome difícil, que parece único em toda a humanidade.
Voltei a atenção ao livro e continuei até entrarmos na cidade. As mesmas perguntas para as únicas passageiras:"Onde você quer ficar?" A outra desceu e, ao fazê-lo, perguntou-me se passaria para o banco da frente. Troquei de lugar e aí pude conversar um pouco mais com aquela "carrapeta". Perguntei-lhe se há muito trabalhava naquele tipo de serviço e ela disse que não. Havia ficado desempregada fazia poucos meses e estava "se virando" até conseguir algo melhor. Contou-me que o carro era dela e propus que pagaria um pouco além do valor da passagem se ela me levasse até o local em que eu deveria estar até as 12:25 h. Sem problemas. Concordou e continuamos a nossa conversa. E como professor tem a mania de querer saber da vida acadêmica dos antigos alunos quando os encontra, não me fiz de rogada e indaguei pelos estudos. Descobri surpresa que a moça é uma universitária no 5º período do Curso de Administração e faz transporte clandestino para continuar os estudos.
Chegamos ao meu local de destino... Propus a ela que me esperasse, pois eu resolveria o meu caso em segundos: 1 ou 2 assinaturas e estaria de volta, e já que minha casa não fica longe do trajeto que ela percorreria na volta...
Com certeza, a moça motorista será uma boa administradora, visto a coragem de estar na Br 040 com seu carro, a decisão rápida quanto ao preço da corrida, o sim sem hesitações...a única carrapeta que conheço no trajeto.
Paguei minha corrida, desci no lugar combinado e fui para casa desejando de todo o coração que o sucesso bata à porta daquela minha ex-aluna.
É gratificante ver os jovens, principalmente quando foram nossos alunos, a despeito de todo o pessimismo da sociedade, lutarem por uma vida melhor. Sei que alguém vai dizer: "Mas você é uma professora, não pode apoiar situações ilegais, como o  transporte irregular!" Direi então que sei que é uma situação provisória, que a moça vai sair dessa, como tantos outros brasileiros que lutam por uma vida digna e são empurrados para serviços alternativos por causa de circunstâncias adversas que a vida lhes apresenta.

"Eu só sei que eu confio na moça
 E na moça eu ponho a força da fé
 Somos nós que fazemos a vida
 Como der, ou puder, ou quiser"
Sempre desejada
Por mais que esteja errada..."
                   (Gonzaguinha)
Cida dos Santos.

3 comentários:

  1. Li e pensei nos muitos alunos que deixei por essa vida afora. Que estarão eles fazendo com tudo aquilo que eu lhes ensinei e, principalmente, com os exemplos que lhes dei? Espero que estejam lutando pelas suas realizações. Espero que eu não tenha sido apenas uma professora no meio das muitas que eles tiveram e terão.
    Como sempre tu ficas fazendo a gente pensar em coisas como uma árvore seca na beira da estrada. Obrigada.

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  2. del
    jardin
    de
    la
    esperanza
    he
    cogido
    una
    flor
    ella
    es
    hoy
    otoño
    y
    te
    doy
    mis
    saludos
    con
    su
    color…



    desde mis HORAS ROTAS
    Y

    AULA DE PAZ


    afectuosamente ., vuestro amigo :


    jose
    ramon …

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  3. ....

    Cida,
    É estimulante saber de histórias como a desta tua antiga aluna. Quem coloca adiante de falsos pregaminhos a coragem de ganhar a vida com honestidade, esforço e determinação, está condenada a vencer, necessáriamente.
    Não pode deixar de se sentir orgulhosa, também, a mestra, que soube incutir na sua discípula tanta determinação.

    Obrigado pela visita.

    Um abraço

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