sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Um poeta lusófono africano

Através do professor Ernane, de Caetanópolis,  fui apresentada à poesia de António Agostinho Neto. Comungo com o professor o mesmo gosto pela poesia em língua lusófona: portuguesa, brasileira, africana, linda!
Por isso os leitores se deparam por aqui com autores como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e tantos outros poetas não brasileiros ainda virão enriquecer este meu espaço.
Neste post atenho-me à poesia forte de Agostinho Neto; forte como a personalidade do autor e como a sua trajetória.
Achei interessante apresentar a biografia  tal qual  a encontrei no Lusofonia Poética e, como ela é extensa, opto por escrever bem pouquinho por aqui e deixar um dos poemas, que é de uma beleza ímpar.

 Quitandeira

                                   Mulata Quitandeira - Antônio Ferrigno - óleo sobre tela

A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.
- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

- Minha senhora
laranja, laranjinha boa!
Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.
Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.
Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.
Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.
Talvez vendendo-me
eu me possua.
- Compra laranjas!
(in Sagrada esperança)


António Agostinho Neto

                                             (Kaxicane 17 de Setembro de 1922, - Moscovo 1997)

Agostinho Neto nasceu na aldeia de Kaxicane, região de Icolo e Bengo, a cerca de 60 km de Luanda. O pai era pastor e professor da Igreja Metodista e, a sua mãe, era igualmente professora.
Após ter concluído o curso liceal em Luanda, trabalhou nos serviços de saúde e viria a tornar-se rapidamente uma figura proeminente do movimento cultural nacionalista que, durante os anos quarenta, conheceu uma fase de vigorosa expansão em Angola.
Decidido a formar-se em Medicina, embarca para Portugal em 1947 e matricula-se na Faculdade de Medicina de Coimbra, e posteriormente na de Lisboa. Dois anos depois da sua chegada a Portugal, foi-lhe concedida uma bolsa de estudos pelos Metodistas Americanos.
Envolve-se desde muito cedo em actividades políticas sendo preso em 1951, quando reunia assinaturas para a Conferência Mundial da Paz em Estocolmo. Após a sua libertação, retoma as actividades políticas e torna-se representante da Juventude das colónias portuguesas junto do Movimento da Juventude Portuguesa, o MUD juvenil. E foi no decurso de um comício de estudantes a que assistiam operários e camponeses que a PIDE o prendeu pela segunda vez, em Fevereiro de 1955,  só vindo a ser posto em liberdade em Junho de 1957.
Por altura da sua prisão em 1955, veio ao lume um opúsculo com poemas seus, que denunciavam as amargas condições de vida do Povo angolano.
A sua prisão desencadeou uma vaga de protestos em grande escala. Realizaram-se encontros; escreveram-se cartas e enviaram-se petições assinadas por intelectuais franceses de primeiro plano, como Jean-Paul Sart, André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir, pelo poeta cubano Nicolás Gullén e pelo pintor mexicano Diogo Rivera, e em 1957, Agostinho Neto, foi eleito Prisioneiro Político do Ano pela Amnistia Internacional.
Em 1958, Agostinho Neto licenciou-se em Medicina e, casou com Maria Eugénia, no próprio dia em que concluiu o curso. Neste mesmo ano, foi um dos fundadores do clandestino Movimento Anticolonial (MAC), que reunia patriotas oriundos das diversas colónias portuguesas.
Em 30 de Dezembro de 1959. Neto voltou ao seu País, com a mulher, Maria Eugénia, e o filho de tenra idade, e passou a exercer a medicina entre os seus compatriotas. Em 8 de Junho de 1960, o director da PIDE veio pessoalmente prender Neto no seu Consultório em Luanda.
Uma manifestação pacífica realizada na aldeia natal de Neto em protesto contra a sua prisão foi recebida pelas balas da polícia. Trinta mortos e duzentos feridos foi o balanço do que passou a designar-se pelo Massacre de Icolo e Bengo. Receando as consequências que podiam advir da sua presença em Angola, mesmo encontrando-se preso, os colonialistas transferiram Neto para uma prisão de Lisboa e, mais tarde enviaram-no para Cabo Verde, para Santo Antão e, depois para Santiago, onde continuou a exercer a medicina sob constante vigilância política.
Foi, durante este período, eleito Presidente Honorário do MPLA.
Por mostrar a alguns amigos em Santiago (Cabo Verde) uma fotografia, em que um grupo de jovens soldados portugueses sorriam para a câmara, segurando um deles uma estaca em que foi espetada a cabeça de um angolano e inserta em diversos jornais (por exemplo, no Afrique Action, semanário que se publica em Tunes) Agostinho Neto foi preso na cidade da Praia em 17 de Outubro de 1961 e transferido depois para a prisão de Aljube em Lisboa.
Sob forte pressão, interna e externa, as autoridades fascistas viram-se obrigadas a libertar Neto em 1962, fixando-lhe residência em Portugal. Todavia, pouco tempo depois da saída da prisão, Agostinho Neto, em Julho de 1962, saiu clandestinamente de Portugal com a mulher e os filhos pequenos, chegando a Léopoldville (Kinshasa), onde o MPLA tinha ao tempo a sua sede exterior,
Em Dezembro desse ano, foi eleito presidente do MPLA durante a Conferência Nacional do Movimento.
Em 1970 foi-lhe atribuído o Prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos
Com a "Revolução dos Cravos" em Portugal e a derrocada do regime fascista de Salazar, continuado por Marcelo Caetano, em 25 de Abril de 1974, o MPLA considerou reunidas as condições mínimas indispensáveis, quer a nível interno, quer a nível externo, para assinar um acordo de cessar-fogo com o Governo Português, o que veio a acontecer em Outubro do mesmo ano.
Agostinho Neto regressa a Luanda no dia 4 de Fevereiro de 1975, sendo alvo da mais grandiosa manifestação popular de que há memória em Angola
Agostinho Neto, que na África de expressão portuguesa é comparável à Léopold Senghor na África de expressão francesa, foi um esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos, armas para a denúncia de situações injustas, instrumento para a reconstrução da nova vida.
Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, foi eleito pelos seus pares o seu primeiro Presidente.
Bibliografia:
Quatro Poemas de Agostinho Neto, 1957, Póvoa do Varzim, e.a.;
Poemas, 1961, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império;
Sagrada Esperança, 1974, Lisboa, Sá da Costa (inclui os poemas dos dois primeiros livros);
A Renúncia Impossível, 1982, Luanda, INALD (edição póstuma).
Fonte:http://www.lusofoniapoetica.com/index.php/artigos/poesia-angola/agostinho-neto.html


6 comentários:

  1. Bacana, Cida. Não conhecia este autor, pelo jeito tem coisas muito boas. Obrigado pelo comentário ao meu último texto. Um beijo e bom domingo!

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  2. Professora Cida, que bela homenagem ao Agostinho Neto, um dos meus preferidos da literatura lusófona africana. Além de sua importância literária, tem sua importância política ímpar na emancipação de Angola. Certamente vale a pena explorar e divulgar autores como ele, para que sejam conhecidos em nosso país.

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  3. Adorei o poema. Só tu mesmo pra proporcionar um prazer como esse dando voz a um poeta tão revolucionário. Pra mim a poesia tem que ter esse tom de denúncia, de compromisso com os fracos, com os desassistidos. Ao mesmo tempo posso ser eu a quitandeira que já não chora e se confunde com os próprios problemas da existência.

    Abraços, querida amiga revolucionária.
    Silvia

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  4. Seja bem vinda ao Cantos de Congo!
    Bjs

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  5. *Marcelo, The EDN, Sílvia, Fátima, obrigada pelos comentários. Fico emocionada de verdade com os poemas do Agostinho Neto, que conforme disse The EDN é uma personalidade importante para Angola e, conforme Sílvia, voz do oprimidos.
    *Sílvia, vc é uma quitandeira que não vende, mas que distribui. E é tanta coisa boa, minha amiga "Quitandeira dos sonhos existenciais".

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  6. Oiê, estive ausente da Net por uns dias, mas com tudo resolvido estou de volta. Obrigada por sua visita, espero continuar contando com sua carinhosa visita!
    Bjssssssss
    Gena Maria

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